quarta-feira, abril 04, 2012

Quando era dia até ser noite

Quando comecei a trabalhar ainda andava no secundário, no segundo 10.º ano que cumpriria, após um primeiro equívoco que me levou para as artes. Das artes, ficou só o artista, que as mãos teimavam em não obedecer aos olhos, quando a professora plantou aquele pimento em cima de uma mesa e disse: "Agora, desenhem". Nunca um pimento foi tão parecido com coisa nenhuma.

Trabalhar e estudar de dia obrigava-me a faltar às aulas, o que me valeu alguns dissabores com a professora de Português, que ainda hoje está para saber como tirei aquele 12 no teste sobre o Sermão de Santo António aos Peixes. E, verdade seja dita, eu também.

Como a maioria do pessoal da minha idade que residia em Leça norte, aquela zona meia perdida entre a Leça dos postais e Perafita, depois de um trabalho de que gostei muito numa empresa relacionada com a UEFA Champions League, tomei o gosto por ter o "meu" dinheiro e fui ganhar uns trocos para os transitários.

O cheiro a óleo e a escape dos empilhadores e dos camiões era tão característico que ainda hoje o conheço. Era divertido, na altura ainda bebia cerveja e isso ajudou à minha integração. Era eventual. Eventualmente, era chamado para trabalhar, às sextas-feiras.

A primeira sexta que trabalhei foi assustadora. Das 8 da manhã de sexta até às 7h30 de sábado. Achei bruto. E, uns meses mais tarde, o Rui, que levava muitos anos daquilo, disse-me: "Isto embrutece um gajo". E eu confirmo, qualquer um confirma. A grande ansiedade era saber quem ficava para a noite de sexta. O pessoal da casa era preferido, obviamente, depois sobravam os que eventualmente ficariam.

Tinha uma explicação. Na altura, o dia começava às 8 da manhã e acabava às 20. Tudo o que fosse para além disso era pago a 100% por hora. Apanhei a fase de transição, em que isso só passou a acontecer entre as 22 e as 6 da manhã. O sol passou a deitar-se mais tarde e a acordar mais cedo.

Mas continuávamos a trabalhar. Na madrugada, quando chegavam os camiões amarelos e azuis, o aspecto era desesperante. Era o algodão para carregar e os "cartões", vulgarmente conhecidos por caixas de papelão. A madrugada era bruta. Olhávamos para os contentores de 40 pés e não lhes víamos o fundo, também por culpa da luz amarela que iluminava um bocadinho o cais. Era desesperante. Os contentores não tinham fim e os camiões também não. Aguentava-se à base de umas cervejas e cigarros.

Valia pelas horas-extra, que ainda não tinham sido muito roubadas, como agora serão, com o aval da UGT e o patrocínio do PSD, CDS e PS, mais a sua abstenção violenta.

Era bruto, como as viagens para Amarante onde íamos montar uma máquina qualquer e carregar tábuas que nunca mais acabavam, numa Toyota Hiace de três lugares onde íamos cinco.

Era bruto como as idas ao Porto de Leixões, para descarregar e carregar contentores de uma ração qualquer que tinha que ser inspeccionada. Tantas vezes.

Para estes homens, os dias vão ficar mais compridos e mais caros, com as horas mais baratas. E com a luz do sol a prolongar-se noite dentro. Mas isso não há-de ser problema para quem nunca os viu nem os vê.

2 comentários:

Pedro Penilo disse...

Belo texto sobre coisas belas escondidas na feiura geral.

Ricardo M Santos disse...

:) grande abraço!