Já não se falava tanto no "milhão" desde as penúltimas Presidenciais, quando Manuel Alegre o carregava às costas, em boletins de voto que foi perdendo pelo caminho até ao mês passado.
Agora, o milhão volta à carga numa manifestação que muito dificilmente sairá do Facebook, cujo objectivo é, passo a citar, "Pela demissão de toda a classe política", seja a classe política o que for. Mas ok, venha de lá esse milhão e a demissão da classe política. E depois vem o quê? Os militares? A classe política engloba governantes, deputados e autarcas? Isso resolveria exactamente o quê?
Nada, obviamente. Nada, porque agir sem uma linha condutora comum entre o milhão que pretenda construir uma alternativa, equivale a nada.
As imagens do Egipto e da Tunísia, as que hão-de vir da Síria e do Iémen dão enorme alento a quem quer mudar. Mas não é mudar para que fique tudo na mesma, é mudar efectivamente, de política, de economia, de relações laborais. E é essa mudança que a suposta manif não alberga. Dali não sai uma ideia, um princípio ou um fim. Os países do Magrebe lutam, precisamente, porque querem uma classe política em vez de uma classe dirigente. Nós, no nosso fado habitual, queremos andar para trás e substituir a classe política, que podemos escolher livremente, por uma classe dirigente. No Magrebe luta-se pela democracia que nós temos. Nós lutamos por coisa nenhuma, porque ou está demasiado sol para ir votar, ou demasiado frio, ou demasiado vento. Ou porque quando chegamos à cabina de voto olhamos para todos os quadradinhos mas a cruz acaba sempre nos do costume. Ou então porque é sempre mais fácil indignarmo-nos na poltrona.
Não sai, sequer, uma indignação genuína com alguma coisa. Sai uma indignação contra tudo aquilo em que se deixaram enredar, umas vezes por culpa própria, outras por culpa própria e de outros intervenientes, que Álvaro Cunhal tão bem explicou:
"Quando as forças reaccionárias dispõem e abusam do Poder, dos recursos e do aparelho do Estado, dos órgãos de comunicação social, nem sempre falar verdade conduz ao êxito imediato. Exemplo flagrante no tempo da ditadura fascista foram as perseguições, as torturas, as condenações, os assassínios de comunistas pela suprema razão que os comunistas diziam a verdade ao povo.
Exemplos flagrantes depois do 25 de Abril é o sistemático silêncio ou a grosseira deturpação das posições do PCP pelos grandes meios de comunicação social controlados pelo governo e a incriminação e condenação como caluniadores daqueles que com inteira verdade desvendam casos gravíssimos de corrupção nas mais altas esferas. O amor pela verdade pode temporariamente custar caro a quem o exercita. Mas a verdade acaba por triunfar da mentira. A política da mentira está condenada à derrota final. É à política da verdade que o futuro pertence."*
Agora podemos voltar a sintonizar a Al Jazeera e olhar, embevecidos, para a coragem daqueles povos, que não querem mais do que nós temos; ao passo que nós achamos que queremos o que eles não querem.
*Álvaro Cunhal, in O Partido com Paredes de Vidro
«Privatize-se tudo, privatize-se o mar e o céu, privatize-se a água e o ar, privatize-se a justiça e... a lei, privatize-se a nuvem que passa, privatize-se o sonho, sobretudo se for diurno e de olhos abertos. E finalmente, (...) privatizem-se os Estados, entregue-se por uma vez a exploração deles a empresas privadas, mediante concurso internacional. Aí se encontra a salvação do mundo... e, já agora, privatize-se também a puta que os pariu a todos» José Saramago - Cadernos de Lanzarote
terça-feira, fevereiro 08, 2011
O milhão
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