Vermelho.
Trocamos o olhar indiferente ou o simples desviar dos olhos pelo sentimento de culpa quando paramos num semáforo e vemos alguém bater no vidro para pedir esmola.
Seja debaixo de chuva, vento ou frio.
Depois o semáforo fica verde e seguimos em frente.
Vermelho.
Paramos nas montras e fazemos contas à vida. De preferência numa superfície comercial atafulhada de gente, com apelos à compra de tudo e mais alguma coisa.
Outra vez vermelho. Paramos e, por uns segundos, pensamos que estamos a fazer compras no dia 24 e que do outro lado do balcão está gente que também tem um dia 24, mas diferente.
Mas temos pressa, porque o dia 24 está a chegar ao fim.
Depois o semáforo fica verde e seguimos em frente.
Vermelho.
Santa Catarina, mas não muito. Quando o sol começa a baixar, não convém ficar por lá. Os sem abrigo incomodam mais do que nos outros dias. Outra vez aquele sentimento de culpa. São velhos, novos, desempregados, toxicodependentes e alcoólicos. Todos num só. Fazemos uma bola gigante de plasticina de cores diferentes, misturamo-los a todos e ficamos com a cabeça cheia de penas. Atiramos uma moeda que ficou no bolso.
Depois o semáforo fica verde e seguimos em frente.
Vermelho.
Comprámos cartões da Unicef, ajudámos a Legião da Boa Vontade, as Casas do Caminho e a Fundação do Gil. Está a chegar ao fim o dia 24. Agradecemos aos VIPs que juntaram-se a uma ou outra iniciativa que proporcionaram uma noite de 24 um bocadinho melhor. Fazemos a digestão ao sono das batatas com a noção de dever cumprido. Passou mais um dia 24 e até ajudámos os mais necessitados.
Jantar sem televisão, por favor. Muito menos os telejornais. Já sabemos que vão abrir com uma vigília à porta de uma fábrica que fechou em Agosto e continua sem pagar aos empregados. Sem televisão, por favor.
Depois o semáforo fica verde e seguimos em frente.
Vermelho.
O dia 25 repete o ritual. Telefonemas de ocasião. Esqueci-me de um postal. Penitencio-me por isso.
Depois o semáforo fica verde e seguimos em frente.
VERDE. Passaram os dias 24 e 25.
VERDE. Seguimos em frente.
VERDE. Venham mais 363 dias para podermos ficar de olhos fechados.
«Privatize-se tudo, privatize-se o mar e o céu, privatize-se a água e o ar, privatize-se a justiça e... a lei, privatize-se a nuvem que passa, privatize-se o sonho, sobretudo se for diurno e de olhos abertos. E finalmente, (...) privatizem-se os Estados, entregue-se por uma vez a exploração deles a empresas privadas, mediante concurso internacional. Aí se encontra a salvação do mundo... e, já agora, privatize-se também a puta que os pariu a todos» José Saramago - Cadernos de Lanzarote
2 comentários:
Que grande texto meu amigo. Muito bom, mesmo....
Escreve...
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